quinta-feira, 15 de março de 2012

20.000 LÉGUAS

Ninguém poderia supor o que passava pela cabeça de Antônio naquela tarde abafada, de céu encoberto por nuvens ralas e cidade abandonada.

Não poderia simplesmente porque não havia quem passasse pela rua para, ainda que de relance, ou assombro, perceber o enorme escafandro sobre seus ombros.
Em janeiro, era comum que os habitantes deixassem suas casas e debandassem para o litoral, carregando seus ardidos sonhos de verão, suas coloridas barracas de praia, cerveja aos engradados e autofalantes turbinados. Todos, menos Antônio.
Era do tipo que preferia o enredo ao cenário, o passado ao imediato, o usado ao plástico, os motivos à moda e o profundo ao raso. É que, desde a meninice, talvez por influência de Chico, Clarice e Vivaldi, havia compreendido que o prazer dependia mais da sensibilidade.
O solitário protagonista deste conto é um prisioneiro da própria profundeza – aquela que umedece os miolos e dica entre as orelhas. Vive no fundo de si, emergindo apenas eventualmente, para as irrevogabilidades. Em geral, se esquiva como pode da polidez pusilânime da sociedade -  e não por outra razão, convive com a imcompreensao de muitos e a do “sistema”, sobretudo.
Sem falsidades, piercing, nem tatuagem – ou, a bem da verdade, sem também objetivo prático nenhum, Antônio desvia os conceitos e os preconceitos do senso comum. E usa perfume de artista incompreendido para subverter os esquemas sorrindo e remar contra a correnteza sem fazer cara feia.
Faz de gazua a cabeça. Trabalha como jurista, mas passa o tempo com os olhos virados para dentro, vasculhando as incansáveis anêmonas do pensamento. De tanto fazer uso da música, cinema e literatura, aprendeu que é curvilínea a linguagem da beleza, e passou a dar conta de tecer castelos moles e sinfonias tortas com o material da própria tristeza.
Sozinho, sentado naquele meio-fio de janeiro, pitando um cigarro de palha baiana e ouvindo pios de pássaros vermelhos, sentia prazer na colagem que montava a partir dos futuros que montava a partir dos futuros cacos de si.
Achava bonito, por exemplo, viver apesar da certeza do fim...Seguir, mesmo sabendo que um dia a graça abandonaria a casa e traria a separação que antes disso, contudo, se irritariam um com o outro – primeiro, por razões importantes; depois por motivos tolos. Que bateriam a porta, dormiriam de costas, emburrariam a cara, morreriam de tédio, se embriagariam num bar, conheceriam outras pessoas e ficariam com a consciência arriada de tão pesada. Que se arrependeriam, fariam as pazes e passarias dias de plena felicidade. Sabia que, um dia depois da briga e da bebedeira, a consciência nada mais sentiria... Então, viriam novos tédios, velhos rancores, e uma pequenina semente de vontade de separar cairia no chão fecundo da insatisfação. Dali, então, um ramo, depois um galho, a folhagem da coragem e o fruto pesado, viscoso e áspero da decisão.
Antônio nunca vivera nada parecido. Mas enxergava, mesmo a 20 mil léguas submarinas, beleza na tristeza de perder a alegria que ele (um dia) conheceria.
Não tinha pressa. Considerava charmosa a impontualidade da futura mulher de sua vida.
Chato, louco, romântico... Preferia o sossego abissal de seu escafandro à dupla Ray-Ban e sungão branco.
Tsc, por mais que sua mãe insista e seus amigos zombem, não tem jeito. Para Antônio, caçar nas próprias profundezas é alongar o prazer que seria fugidiço entre as barracas cravadas na superfície da areia.
MSM

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